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Gisela Rao

Nunca estamos preparados para a morte de um jovem

Gisela Rao

15/03/2020 04h00

Foto: www.freepik.com – rawpixel

Eu estava comendo pudim, no restaurante, quando minha irmã ligou chorando para avisar que meu sobrinho Sergio, de 30 anos, tinha morrido de AVC, na porta do prédio. Além da boca instantaneamente seca, olhei para o meu marido com uma cara que o fez pedir a conta na hora, sem precisar de nenhuma palavra.

Há alguns meses eu fiz um curso sobre cuidados paliativos, no qual tive uma pincelada sobre o luto. Nunca imaginei, no entanto, que meu primeiro estágio seria tão rápido – e com uma pessoa tão jovem e amada.

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Domingo passado se transformou em um dos mais densos filmes do gênero drama rachado em duas telas: a família do pai (meu irmão) e a família da mãe.

Quando cheguei à casa onde estavam minhas irmãs, todas as paredes estavam pintadas de sofrimento. Não havia sobrado um osso sequer na alma de qualquer uma delas. Eram três mulheres que se curvavam de dor, ao mesmo tempo, num choro gutural que vinha das cavernas mais profundas e inexploradas das entranhas.

O silêncio presente foi uma das coisas que aprendi, sobre o luto, com o psicólogo Rodrigo Luz. E foi nesse doloroso silêncio que consegui me centrar e, com calma, abraçar profundamente quem estava estilhaçada.

Meu irmão estava vindo de Ubatuba e nos comunicávamos, no WhatsApp, por emojis – como o do coração partido e o do rosto amarelinho que deixa escapar uma lágrima só. Às vezes, uma palavra errada fura a delicada bolha de sabão dos sentimentos à flor da pele.

Mais tarde, fui ao prédio onde estava a família da mãe do meu sobrinho. Serginho estava deitado no sofá do salão de festas, onde outrora se esbaldou em festas de aniversário. Ele estava lindo e cobertinho por uma manta, como se a mãe quisesse aquecer o filho que ela não mais poderia embalar fisicamente. Foi nessa hora, íntima e humana, que pude me despedir dele e que recebi a dura incumbência de vasculhar seus bolsos para pegar seus pertences.

A adrenalina é clemente. E diante de tantas coisas práticas a se fazer nessa hora, deixa a ficha pairando no ar. Ficha essa que eu sabia que em breve cairia como a lâmina de uma guilhotina no coração da mãe.

Estudar sobre a morte me ensinou também a ver a beleza oculta nas coisas. Talvez isso soe estranho, mas nesse caleidoscópio de sutilezas, mesmo na pior das adversidades, consegui lembrar à mãe da maravilhosa jornada espiritual que ambos fizeram juntos nesses dois anos, quando Sergio estava focado em ressignificar a vida. Por um mistério do destino, ele foi se confessar três dias antes. É como se Deus, o Universo, a Grande Energia – chame como quiser – estivesse preparando ambos para a hora de descer na última estação de embarque.

Nessa noite, à espera do que se intitula desgraçadamente de "transporte de cadáveres", uma gata da rua, muito linda, entrou no prédio. Ela ingressou no salão de festas e foi observá-lo. Foi enxotada delicadamente, voltou e fez o mesmo percurso. Para os egípcios, os gatos têm o poder de guiar a alma dos mortos.

Velório de gente jovem é triste ao quadrado. Metade dos amigos se afogando em lágrimas, os mais velhos se consolando. É um casamento às avessas: tem padre, comida, gente que chora, gente que ri, gente que não vemos há muitos anos. Todos nos lembrando que o tempo passa e a impermanência é "o cara" – mas todo mundo sabe que, no final, nosso vazio existencial será um pac-man devorando nosso coração. E, nossa, como os mantras ajudam nessa hora!

Mas isso também passará: a dor aguda vai virar crônica e a saudade ficará dando match com as boas lembranças.

Não, caixão de jovem não deveria ser de madeira escura, e nem rodeado de flores. Deveria, sim, ser recheado de games, skate, celular, pendrives com música, essas coisas todas que compõem a alegria da vida dessa juventude zero transviada.

Eu sei que sua jornada vai ser linda, sobrinho querido e companheiro de tantos "hehehes". Juro que achei que estava levando esse luto na flauta, até perceber que estava dormindo há três dias com o urso encardido da infância, acredita? "Quando eu morrer, filhinho, seja eu a criança e pega-me tu ao colo" e voa, parça, voa, o céu está aberto. O caminho é esse…

"O Belo se foi. Deixou para trás as cores confusas, o verão perdido, as ruas trôpegas, o espelho órfão, o ar escasso. Foi-se o brilho na sala, o calor do abraço, o olhar intenso, o carinho no enlace das mãos, a alegria da face. Deixou paixões atordoadas, os amores perplexos, os pares atônitos e seus anjos desnorteados. Nosso menino lindo está agora entre a copa das árvores, no som das chuvas, cachoeiras, riachos… Está no frescor dos ventos, na beleza e no perfume das flores. No calor do sol e na luz das estrelas. Está sereno, doce e eterno no aconchego do coração de cada um de nós." – Adriana Cochrane Rao

Sobre a Autora

Gisela Rao é criadora e criatura de conteúdo, safra 64 – Ano do Dragão. Publicitária e escritora, é “porta-bandeira” dos temas sexo e autoestima, trazendo para a comissão de frente algumas das grandes pedras-no-scarpin femininas. Teve os programetes “Repórter Rao” e “A Monja e Emotiva” (UOL) e foi colaboradora das revistas e jornais: Folha de S.Paulo, Jornal da MTV, Época, Marie Claire, SPFW Journal, Isto É Gente, UMA, VIP, Bons Fluidos, Viagem & Turismo e TOP Destinos. É autora dos livros “Sex Shop”, “Tchau, Nestor” e ‘Não Comi, Não Rezei, mas Me Amei”. Opa! Não desligue ainda, tem mais: foi fundadora do Movimento Vigilantes da AutoEstima e uma das idealizadoras da ONG Estou Refugiado.

Sobre o Blog

A ideia desse blog é trazer um “Ufa!” para os perrengues da “classe” 50+: corpo, preconceitos, paúras, relacionamentos, medo de morrer, sexo... num tom divertido, autobiográfico e gente-como-a-gente. #EnvelhecerSemPhotoshop

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